7 de setembro de 2013

Memória e Vida

Por André La Salvia


Diante do tema das 'memórias vivas' somos instigados a pensar: quais são as relações entre a memória e a vida? Podemos desdobrar um pouco mais, trazendo para esta questão perguntas filosóficas sobre o tempo, sobre o conhecimento e também sobre ética e cidadania.


Para começar, podemos juntar a esta pergunta o trabalho do filósofo francês Henri Bergson, para quem a memória necessariamente envolve a questão do tempo e do conhecimento. Para o filósofo, o tempo não pode ser entendido como a sucessão de instantes, como se um momento substituísse outro momento em uma linha evolutiva/progressiva passado-presente-futuro. Senão estaríamos sempre apenas no presente (o passado como um presente que passou e o futuro como um presente por vir). Para ele nosso passado se conserva inteiro, cresce incessantemente e existe ao mesmo tempo que o presente. E mais, em nossa memória todos os acontecimentos passados coexistem, nossa memória não é cronológica, mas guarda tudo junto.





Qual a relação do passado com o presente? Nossas memórias se debruçam sobre cada presente tudo de uma vez. É a percepção de um dado presente que nos estimula a acessar uma parte deste passado em geral.  Em cada presente, toda nossa memória está em vias de se atualizar, são os momentos presentes que estimulam uma região ou outra do passado possibilitando o acesso a determinada lembrança e não outra. A memória não é um sistema de classificação e registro do que se passou, mas o arcabouço de onde tiramos relações com o presente que estamos vivendo. A memória é 'viva' porque ela insiste virtualmente em nosso presente, não somente porque ela está em nós, mas porque ela cria elos com a decifração/interação com o presente. Como o exemplo dado por Marcel Proust, ao comer uma bolacha em um café, ao sentir seu gosto (um estímulo presente), vem até ele memórias de sua cidade natal no campo e dos chás com bolachas que tomava com uma tia doente.



Desse modo, podemos dizer que Bergson nos propõe pensar o tempo como desdobrado: há um tempo quantitativo, duro, da linha cronológica do passado-presente-futuro, útil para nossa organização intelectiva e interação racional com o mundo; mas podemos pensar em um outro tempo, um tempo da duração das mudanças qualitativas, passagens de um estado a outro, transformações – crescer, amadurecer, esverdear... Por exemplo, leva-se de quatro a seis meses para se aprender natação, durante este tempo cronológico, em algum momento houve a transformação de uma pessoa em um nadador. É o tempo de um acontecimento: tornei-me nadador.


Fotos Antigsas de Bragança Paulista


Utilizar o exemplo da aprendizagem aqui não é por acaso, mas sim porque essa ideia do tempo nos faz encarar a aprendizagem como um processo ativo e intenso, onde nos tornamos algo. Aprender não é um produto que adquirimos pronto e acabado, que estaria presente em um livro ou com alguma pessoa com as quais entramos em contato e adquirimos. Aprender seria operar uma transformação ao adquirir uma novidade através de um processo, um processo que nunca cessa, porque o ideal é nos tornarmos um 'eterno aprendiz'. 



Consequentemente, precisamos de um ambiente que possibilite o contato com o outro e com a diversidade cultural, para alimentarmos essa aprendizagem infinita. A coexistência das diferenças possibilita a eterna abertura para o outro. Dentro dessa perspectiva, se torna necessário o princípio ético de construção do espaço público como local de experimentação e aprendizagem para a convivência com a diversidade.


Fatos e Fotos de Bragança Paulista

E assim chegamos a reflexão sobre a relação da memória, da vida e da cidade. Um pedaço de nossas experiências se dá em nossas cidades (às vezes vivemos em mais de uma cidade ao longo da vida). As memórias-cidades nos co-habitam também, coexistem com tudo aquilo que sentimos, pensamos, desejamos. Independente do que se diga o que é patrimônio histórico, quais lugares ou práticas devem ser preservadas, as cidades podem preencher nossas necessidades de experimentação da diversidade cultural, e também preservar vivo o acesso ao antigo, possibilitando ao nosso olhar aspectos passados acessados a partir de estímulos presentes. Andado pelas ruas, sentido seus cheiros, ouvindo seus barulhos, reparando nos contornos arquitetônicos dos prédios, vendo os limites do seu horizonte, podemos intensificar memórias. A memória-viva-cidade é o espaço público como arcabouço de experiências possíveis de estímulo a reflexão e ao olhar. 



Uma consequência ética desse pensamento seria o fato de que é necessário preservar a diversidade cultural das cidades para que possam possibilitar a intensificação de memórias para aqueles que se abrem a elas. Precisamos manter vivas certas memórias para intensificar uma relação de reflexão: o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos? Que tipo de relação com a cidade eu quero? O que devemos preservar para o futuro?

 André La Salvia é professor, filósofo e responsável pela série de curtas “Memórias Bragantinas


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